quinta-feira, 29 de março de 2012

País fica menos inteligente com a morte de Millôr Fernandes

Millôr Fernandes na verdade se chamava Milton Fernandes. Nascido em 23 de agosto de 1923, morreu na noite de terça-feira, aos 88 anos, mas como foi registrado em 27 de maio de 1924, tinha “oficialmente” 87. Essa identidade múltipla se traduziu também em seu trabalho: foi desenhista, poeta, jornalista, dramaturgo, humorista, tradutor e escritor. Em cada uma das funções deixou marca de qualidade tão impressionante como a capacidade de não levar a sério a pompa.

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Homem gregário, que participou de vários projetos coletivos, Millôr morreu em casa, na companhia de poucos familiares, de falência múltipla de órgãos e parada cardíaca. O escritor ficou internado por cinco meses na Casa de Saúde São José, em Botafogo, no Rio de Janeiro. Em fevereiro, foi vítima de um AVC, do qual se recuperava.

Criado sem os pais, que morreram quando era menino, Millôr sempre carregou traços de uma maturidade precoce: foi autodidata em todas as artes que exerceu e começou cedo na imprensa, aos 14 anos. A soma de liberdade com necessidade fez dele um homem que rompia com limites e não tinha medo de experimentar. Aos 19 anos, ingressa na revista O Cruzeiro, a mais importante da época, criando um estilo que levaria por toda a vida: a leitura crítica da realidade, a ironia, a erudição, o desenho carregado de ousadia e o virtuosismo epigramático. Foi um dos maiores frasistas da imprensa brasileira.

Millôr trabalhou em vários jornais e revistas, entre eles O Globo, Veja e O Estado de S. Paulo, além de ter criado seu próprio veículo, O Pif-Paf, considerado um dos primeiros periódicos alternativos, que durou apenas oito números. A inspiração voltaria com O Pasquim, do qual participou desde os primeiros momentos ao lado de outros artistas que, como ele, exercitavam o desenho e o texto, como Jaguar e Ziraldo. O modelo marcou época pela irreverência e coragem em desafiar o regime militar, tanto em política como na área sensível do comportamento.

Tudo que o aproximava do deboche, ainda que como método da crítica social, parecia se equilibrar no outro lado da criatividade do artista. Millôr foi um desenhista moderno, influenciado pelos sofisticados cartunistas americanos, mas que tinha traço autoral destacado, que fundia informação e uma falsa ingenuidade naif. No texto para a imprensa, sua verve era moralista, alegórica e paródica, trazendo elementos eruditos que se mesclavam ao dito exato e à capacidade de síntese.

O teatro foi um dos territórios em que mais se destacou, como autor de dramas, comédias e musicais, além de importante trabalho como tradutor. Algumas de suas peças fazem parte da melhor dramaturgia brasileira do século 20, como É, Um elefante no caos e Liberdade, liberdade. Entre suas traduções destacam-se versões de Shakespeare (A megera domada, Hamlet e Rei Lear), às quais dotava de linguagem moderna e expressiva, elogiada por especialistas e atores. Traduziu ainda peças de Tchekov, Brecht, Ibsen, Racine, Molière, Pirandello, Harold Pinter, Samuel Beckett, Bernard Shaw, Edward Albee, Tennessee Williams e até tragédias e comédias gregas clássicas de Aristófanes e Sófocles.

Como poeta, Millôr foi hábil em casar versos populares com formas mais tradicionais e dar dimensão popular ao hai-kai, poesia clássica japonesa com três versos e 17 sílabas. Nesse tipo de poema, o importante é a iluminação ou a capacidade de flagrar o sentido universal em um instante. Depois de Millôr, o hai-kai entrou em moda e se tornou a forma preferida de muitos jovens poetas, o que deixou às claras a diferença entre uma boa ideia e uma realização madura. Mesmo sem perder o humor, poesia para ele sempre foi coisa séria. O poeta Millôr, mesmo com vários livros publicados, ainda não foi suficientemente valorizado.

Millôr Fernandes fez parte de uma geração que chegou à maturidade com um inimigo comum, a ditadura militar, e que dispunha de um singular instrumento de combate político, a arte. Com a censura à imprensa, a pressão sobre a universidade e fechamento das instâncias tradicionais de participação, a inteligência migrou para as ruas e para as casas de espetáculo. E para os bares, com o carioquismo que talvez seja o único cacoete de Millôr Fernandes, em sua autorreferência incontida. Como bom jornalista, em mais de 70 anos de imprensa, além de manter os generais na mira, não perdoou um presidente sequer, de Getúlio Vargas a Lula, passando por JK, Jango, Jânio, Sarney e FHC, em termos nem sempre elegantes. Mas nunca totalmente injustos.

O escritor e desenhista soube captar as possibilidades do momento, incorporando um patrimônio pessoal de saber autodidata que deu distinção a seus trabalhos em meio à intensa produção do período. Com o passar do tempo, talvez cumprida a tarefa mais urgente de contestação, ele se viu isolado em paradoxo que ele mesmo descreveu certa vez: “Infelicidade: nascer com talento melódico numa época em que o pessoal só se interessa por percussão”. Ele soava sempre um tom acima da média.
O teste da posteridade deverá ser justo com Millôr Fernandes. Sua obra é íntegra, criativa e vai além das mazelas do tempo e da inspiração militante ou jornalística. Quando não era engraçado, Millôr era inteligente demais.

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